quarta-feira, 19 de maio de 2021

Eu escrevo: Os pedidos

 Conto inspirado no conto "A Pata do macaco" de W. W.  Jacobs.


Quando a pata do macaco chegou às minhas mãos, eu já sabia quais seriam os meus três desejos. 

A despeito do que se acreditava inicialmente, sua posse não estava limitada a apenas três pessoas. 

Estudara muito e planejara os meus pedidos com cautela e acreditava que tinha encontrado um modo de não sofrer nenhuma consequência e evitar que a entidade que realiza os desejos fosse capaz de distorcer meus pedidos e trazer a minha ruína.

O primeiro pedido foi sempre ganhar na loteria quando eu jogasse.

O segundo pedido foi viver com saúde para gastar o dinheiro.

O terceiro pedido foi que nenhum inimigo conseguisse me fazer mal.

Quando terminei de fazer o último pedido, a pata se fechou e eu a deixei em cima de uma lixeira na rua para que ela encontrasse o seu próximo possuidor.

Após ter feito os meus desejos, a pata do macaco não teria mais qualquer serventia para mim.

Segui para a casa lotérica e fiz a aposta mínima na mega sena e fui para casa aguardar ansiosamente pelo resultado. Na noite daquele dia eu ganhei meus primeiros milhões.

Mal podia acreditar! Paguei todas as minhas dívidas, ajudei parentes, fiz vultosas doações para instituições de caridade.

Então coloquei em prática o sonho de toda uma vida: viajar o mundo inteiro!

Durante a minha estadia em determinado país, eu procurava a loteria local e fazia sempre a aposta mínima. No final da viagem, saía com mais recursos financeiros do que quando chegara.

A maior parte da minha fortuna já estava em paraísos fiscais.  Procurava não esbanjar muito e nem ostentar, para manter minha privacidade, meu bem-estar e principalmente, minha segurança.

Minha única extravagância foi comprar uma mansão em uma propriedade rural.

Finalmente construí a minha biblioteca dos sonhos.

Ela ocupava uma ampla sala com pé direito alto. Três das paredes eram recobertas por luxuosas estantes de madeira maciça com portas de vidro para proteger os livros da poeira e ainda sim possibilitar apreciar suas belas lombadas e capas.

Colecionava volumes raros ou com encadernações maravilhosas. Sempre que viajava, garimpava mais alguns títulos para a minha seleta, mas imensa coleção.

Em uma das paredes, havia uma imensa janela e na sua parte inferior um divã para que eu pudesse me deitar confortavelmente e me perder durante horas nas minhas leituras diárias.

Uma certa seção da estante escondia uma passagem secreta (sempre quis ter uma assim!) para um quarto do pânico/bunker, que possuía toda a estrutura para que eu sobrevivesse sem problemas e em segurança por pelo menos seis meses, além de um sistema de circuito interno de vigilância que me permitia ver todas as imediações da propriedade e até mesmo da estrada de acesso aos portões externos do terreno.

Durante muitos anos vivi uma vida confortável, cheia de luxos e prazeres. Nada estava fora do meu alcance.

Tudo, sem exceção tinha seu preço, bastava descobrir qual era.

Que tolice a minha achar que poderia passar a perna na entidade ancestral que concede esses desejos!

Certo dia, sofri um acidente de carro que me deixou totalmente paralisada, o que é conhecido como síndrome do encarceramento.

Com exceção de meus olhos, que são meu único vínculo com o mundo exterior, não consigo mover um músculo.

Graças a um sistema informatizado de última geração que acompanha os meus movimentos oculares, consigo, por meio de um sintetizador de voz, me expressar.

Apesar de estar oficialmente saudável, afinal, nenhuma doença me acomete, não posso usufruir de meus recursos financeiros a não ser para arcar com minhas despesas médicas.

Além disso, para minha tristeza, descobri que, a não ser que efetue a aposta pessoalmente, eu não consigo ganhar. Já tentei ditar os números  para que alguém registrasse o jogo ou mesmo que movimentassem minhas mãos para que eu mesma marcasse a folha de aposta, mas nada funciona.

Tentei até pela internet, mas misteriosa e inexplicavelmente sempre ocorre um erro antes de completar o processo.

E na situação que me encontro não posso ser movido com segurança para fora das instalações do hospital.

E este foi o terrível preço pelo meu orgulho e por me envolver com o desconhecido e tentar mudar meu destino.

O que me resta são apenas as preciosas memórias dos bons momentos que vivi.

Pelo menos posso ler e viajar nos livros, mas apenas no formato digital. Todas as minhas belíssimas obras estão trancadas a sete chaves em minha mansão, assim como eu estou trancafiada neste corpo inválido.

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